Ao se discutir a temática da possibilidade de exclusão ou saída de um sócio de uma sociedade, deparamo-nos com a inevitável discussão sobre a forma correta de apuração de haveres, e a aplicação ou não de critério econômico para calcular o montante devido ao sócio retirante ou excluído.
Tal fato é muitas vezes ignorado no momento da redação do contrato social e instrumentos correlatados, os quais acabam não prevendo disposições nesse sentido, dificultando, assim, o trabalho de todos os envolvidos em um evento de saída de sócio.
Sobre o tema, em 13 de abril de 2021, a 3ª Turma do STJ, por maioria de votos, negou provimento ao recurso especial ajuizado pelos sucessores de um sócio de empresa de pinturas que esperavam calcular o valor das quotas pertencentes ao seu falecido pai com base em critério econômico, sugerindo a utilização do método de fluxo de caixa descontado.
No julgamento prevaleceu o voto divergente do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que entendeu que a metodologia do fluxo de caixa descontado, associada à aferição do valor econômico da sociedade, utilizada comumente como ferramenta de gestão para a tomada de decisões acerca de novos investimentos e negociações, por comportar relevante grau de incerteza e prognose, sem total fidelidade aos valores reais dos ativos, não é aconselhável na apuração de haveres do sócio dissidente.
Ato contínuo, o Ministro ainda versa que a doutrina especializada, produzida já sob a égide do Código de Processo Civil de 2015, “percebe que o critério legal (patrimonial) é o mais acertado e está mais afinado com o princípio da preservação da empresa, ao passo que o econômico (do qual deflui a metodologia do fluxo de caixa descontado), além de inadequado para o contexto da apuração de haveres, pode ensejar consequências perniciosas, e que só poderia ser aplicado o método de fluxo de caixa descontado para determinar o preço a pagar ao sócio retirante, em se havendo o encontro de vontades estipulado em cláusula contratual prevendo o cálculo desta forma”. [1]
Por outro lado, a Ministra Nancy Andrighi, que teve seu voto vencido, entendeu que se na alienação de participação societária se aceita de forma pacífica que o valor de mercado das quotas seja apurado mediante aplicação da metodologia do fluxo de caixa descontado, não se vislumbra motivo para que esse mesmo método não seja utilizado na apuração de haveres do sócio retirante.
O confronto entre as duas linhas de pensamento é relevante, e o desfecho deste último julgamento do STJ se contrapõe à decisão da mesma turma em 03 de março de 2015, ao julgar o Recurso Especial 1335619/2015. Na época, foram submetidos à corte superior dois aspectos a serem julgados, a saber, in verbis: a) na dissolução parcial de sociedade limitada, deve prevalecer o critério de apuração de haveres previsto no contrato social ou é admissível a escolha de outro para determinação do valor efetivo da empresa?; e b) pode ser utilizada a metodologia do fluxo de caixa descontado para se calcular esse valor?
Em relação ao primeiro item, a 3ª Turma do STJ entendeu que “em uma dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado”.
Ao tratar do segundo item submetido para a sua apreciação, a 3ª Turma do STJ alcançou a seguinte decisão:
O fluxo de caixa descontado, por representar a metodologia que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa, pode ser aplicado juntamente com o balanço de determinação na apuração de haveres do sócio dissidente.
Em nosso entendimento, o problema central na decisão de 2015 do STJ foi justamente relativizar qualquer disposição inserida nos documentos societários da sociedade [2], desconsiderando os princípios da autonomia da vontade das partes e da pacta sunt servanda, e decidir pela aplicação do critério econômico, enquanto o contrato social previa apenas a possibilidade de levantamento de balanço especial para apuração de haveres.
Ainda sobre a força das previsões existentes em Contrato Social, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 13 de junho de 2021, julgou ser válido o regramento contratual de pagamento a sócio excluído na proporção de sua participação no capital social, e não com base nos valores investidos no negócio.
O julgamento abordou o pedido do autor de dissolução parcial da Sociedade, assim como anulação de cláusula do contrato social relativa ao capital social, decorrente de alegação de dolo na fixação deste em valor menor ao efetivamente aportado pelos sócios na sociedade.
No relatório, expôs o magistrado que foi firmado acordo de sócios anteriormente à constituição da sociedade, estipulando cláusula prevendo que, na hipótese de exclusão de sócio por justa causa antes de 24 (vinte e quatro) meses do início da operação, os haveres deste seriam apurados de acordo com a sua participação no capital social da sociedade, que à época foi limitado a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
No caso em comento, o autor foi excluído da sociedade extrajudicialmente por justa causa, por sua má administração, e inconformado com a apuração de seus haveres entrou com pedido de dissolução parcial da sociedade, solicitando que o investimento realizado no montante de R$ 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil reais) lhe fosse restituído, pois os corréus teriam se aproveitado de sua inexperiência no assunto para fixar valor inferior de apuração de haveres.
Todavia, entendeu o Ilmo. Relator Azuma Nishi que, no âmbito de sua liberdade de contratar, resolveram os sócios que o capital social seria de R$ 100.000,00 (cem mil reais), inobstante o fato de que o investimento aportado na sociedade teria sido maior, pois “o fizeram visando delimitar a responsabilidade pelos riscos do negócio, não havendo que censurar tal prática, pois é da essência da atividade do empresário o dimensionamento de riscos, inclusive quanto ao montante do capital social, que é a garantia do comprometimento dos sócios em relação à sociedade, como da sociedade em relação a terceiros”. [3]
Entendemos que este entendimento está em linha com a redação do artigo 1.031 do Código Civil e artigo 604, II do Código de Processo Civil. Nota-se:
Código Civil
Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.
Código de Processo de Civil
Art. 604. Para apuração dos haveres, o juiz:
(…)
II – definirá o critério de apuração dos haveres à vista do disposto no contrato social; e
Além da previsão dos dispositivos citados acima, o artigo 3º, inciso VIII, da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), prevê a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários sejam objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto às normas de ordem pública.
Não obstante a autonomia das partes contratantes, devemos voltar a nossa atenção para a segunda parte do artigo 1.031 do Código Civil, reforçada no artigo 606 do Código de Processo Civil [4], pois este dispõe que a regra geral para apuração de haveres seria o levantamento de balanço especial com base na situação patrimonial da sociedade.
Neste caso, especificamente, ficou constatado que a sociedade operava em prejuízo e já teria consumido todo o capital até então aportado pelos sócios, contribuindo tal fato para o entendimento do Ilmo. Relator Azuma Nishi pelo acolhimento da sistemática pactuada entre as partes contratantes para determinar a apuração dos haveres do sócio excluído. [5]
Apesar de tratarmos sobre três decisões distintas, o ponto de intersecção entre estas é justamente o reconhecimento da autonomia das partes em desenhar a forma como os negócios sociais serão performados, tendo sido tal premissa prejudicada apenas pelo entendimento do STJ em sua decisão de março de 2015.
Conforme permissivo do artigo 1.031 do Código Civil e do artigo 3º, inciso VIII, da Lei nº 13.874/2019, deve-se sempre levar em consideração a autonomia privada, a liberdade contratual e a legalidade, pois estes consolidam o direito das partes contratantes de escolher se querem ou não celebrar um contrato, bem como seu conteúdo e suas condições, desde que acordadas em boa-fé, respeitando a função social do contrato e não contrariando nenhum dispositivo legal. [6]
Conclui-se, do exposto, que o empresário deve ter cuidado e alto nível de atenção na redação dos documentos societários e na escolha das normas de regência da sociedade, evitando-se insatisfação futura das partes quando diante um impasse interno que gere a dissolução da sociedade, prevendo o processo de sua escolha para o cálculo de apuração de haveres, e minimizando a possibilidade de discussões judiciais.
Eduardo Ribas / Lívia de Moraes
[1] REsp. 1.877.331 – SP (2019/0226289-5) (aqui).
[2] STJ – REsp. 1335619/2015.
[3] Apelação Cível nº 1005431-45.2014.8.26.0248 -Voto nº 11900 (aqui).
[4] Art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo tam bém a ser apurado de igual forma.
[5] Apelação Cível nº 1005431-45.2014.8.26.0248 -Voto nº 11900. Voto: “Com efeito, é fato incontroverso que a empresa encerrou atividades em razão dos prejuízos acumulados, dessa forma, o aumento do capital social determinado na r. sentença acarretará a devolução ao autor de todo o capital investido por ele, desconsiderando-se, pois, os riscos da atividade e os prejuízos advindos do negócio, que devem ser partilhados entre os sócios. De mais a mais, sequer há discussão sobre a juridicidade da exclusão do auto”.
[6] TAVARES BORBA, José Edwaldo. Direito Societário. 1998, 4 edição, Freitas Bastos.